Hoje recebemos Eduardo Nardelli, Vice-Presidente de Arquitetura do Sinaenco, o Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva.
Vamos falar um pouco do Building Information Modeling, ou Modelagem de Informação da Construção, o BIM. A ferramenta faz parte de uma transformação digital do setor de construção civil que aos poucos está chegando a todo o país.
A metodologia BIM permite a criação de um modelo digital do projeto de construção com a integração de todas as informações da obra, e permite também a interação de todos os profissionais envolvidos, o que possibilita uma gestão colaborativa. Isso se traduz em uma relevante melhora nos níveis de confiabilidade, produtividade, inovação e sustentabilidade em todos os ciclos de vida da construção.
Concrete Show: Para começar eu gostaria de abordar o decreto federal que estabeleceu a obrigatoriedade do uso de BIM na contratação de projetos em obras públicas, e também a nova lei de licitações e contratos administrativos que dá preferência ao uso da tecnologia. O que esse movimento em prol da aplicação do BIM representa para o setor de construção no Brasil?
Eduardo Nardelli: “Eu acho que é um marco muito importante. O decreto 10.306, que ordena e dá uma nomenclatura para a adoção do BIM pelo setor público e incorpora um roadmap que já vinha sendo elaborado anteriormente a partir de 2018 por consequência da criação de um comitê para a estratégia BIM no Brasil, ele organiza como fazer isso, o passo a passo, etc.
E a nova lei de licitações, 14.133, ela incorpora em seu texto a ideia da contratação do BIM. Então isso tudo é um marco muito importante para a gente. O Brasil é hoje um dos três países da América que tem o BIM mandate, como a gente chamaria, os outros são os EUA e o Chile, e alguns países estão com política de estímulo a isso mas ainda não chegaram a um mandate, como é o caso do Canadá e do Peru, e outros países ainda estão engatinhando.
Então isso nos coloca em uma posição. É uma boa notícia, mas também uma má, que depois vou contar o porquê [risos].”
Concrete Show: Essa análise mais detalhada da construção pode ampliar a transparência nas contratações públicas. Que outros benefícios o BIM oferece para os projetos públicos?
Eduardo Nardelli: “O que é BIM? Ele é um processo que integra basicamente tecnologia, os métodos de se fazer um projeto e pessoas, e tudo isso dentro de uma nova concepção, porque quando a gente faz projeto nós representamos ideias sobre um papel.
Nós desenhamos paredes, fazemos duas linhas paralelas em planta, e o BIM não é assim. Ele é uma simulação da construção, uma construção virtual em que você utiliza componentes digitais que além da informação geométrica eles trazem embutidos informações sobre várias coisas, como desempenho do ponto de vista estrutural, térmico, acústico, de comportamento.
Então quando você está fazendo um projeto utilizando o BIM, na realidade você está construindo virtualmente, e é aí que começam os problemas. Porque quando falamos do BIM falamos de Building Information Modeling, então uma modelagem da construção, mas no meio tem o I, da informação, e essa gestão da informação que é a grande contribuição do BIM.
Você falou da transparência, e com certeza. Quando você faz o modelo BIM você terá os quantitativos extraídos automaticamente, e não tem como burlar isso, é absolutamente transparente. Está lá tantas portas, e não tem como discutir. Você pode fazer inclusive simulações de desempenho, só que você só pode fazer isso se tiver tomado as decisões necessárias para que essas coisas aconteçam. Só que hoje muitas dessas decisões são tomadas em obra.
E a nossa legislação de licitações, que inclusive foi mantida na 14.133, ela é muito ruim, porque ela fala em uma coisa chamada projeto básico, e ele não chega em um nível de detalhamento de um projeto executivo, que é a compatibilização de todas as disciplinas que estão envolvidas no projeto, como arquitetura, estrutura, ar condicionado, instalações.
Tudo isso você faz a compatibilização para que ninguém passe um duto de ar condicionado onde tem uma viga por exemplo, então essas coisas são importantes de serem resolvidas. Só que quando você faz um projeto básico muitas dessas decisões ainda não estão tomadas.
E aí quando você vai fazer a obra, você chega lá e alguém tem que fazer o projeto executivo, e então uma terceira pessoa vai tomar essas decisões. Então nem sempre o que foi imaginado no projeto básico vai acontecer quando você for fazer a obra, e isso não é compatível com o BIM.
Porque se nós estamos fazendo uma construção virtual, essas decisões já deveriam ser tomadas no processo de projeto, inclusive para termos a transparência e assertividade que buscamos.
Isso só pode acontecer se for feito antes, e o grande problema nosso é esse, que a nova lei de licitações, ao invés de avançar nessa matéria ela manteve todos os erros que víamos em seu corpo, então fica uma coisa um pouco esquizofrênica. Nós vamos contratar BIM mas não vamos trabalhar como se deveria com o BIM? Isso se torna um grande problema que teremos que resolver mais pra frente.
Não torna incompatível no sentido de que seja impossível, mas não faz sentido você adotar um processo que prevê a integração de todas as disciplinas colaborativamente pela metade, e vai preservar erros que nós vínhamos cometendo e que dão grandes problemas, com prédio caindo inclusive.
Então a gente precisava na verdade ter incorporado nessa nova legislação esse princípio todo do BIM, que é ter o processo colaborativo, integrado, trazer os agentes que vão construir lá na frente para a fase de projeto, pois estamos construindo virtualmente.
O arquiteto por exemplo pode mandar para o engenheiro elétrico as informações sobre onde ele quer que coloque o interruptor, o quadro de luz, coisas do tipo. O projeto de elétrica vai mandar o desenho de um retângulo falando que é o quadro de luz, mas no BIM não é assim. No BIM você coloca o quadro de luz na posição que ele tem que ficar na parede, na altura, etc.
E hoje o que acontece? Essa decisão é tomada na obra, e no BIM não é para tomar na obra. E o grande problema é que quando você faz o projeto e toma uma decisão, depois você avalia as consequências disso, porque ela repercute em outras coisas. De repente onde onde você imaginou de colocar o quadro de luz passe uma tubulação hidráulica, e essa compatibilização é fundamental, é o que se faz no projeto executivo.
No BIM isso teria que ter sido resolvido. Então você fazer o projeto todo em BIM só para tirar quantitativos e fazer uma simulação ou outra, sem ter todas as disciplinas resolvidas, é uma coisa estranha. Fica mal remendado.”
Concrete Show: Em relação ao processo de adaptação das empresas ao BIM, você acredita que irá demorar, e que exigirá uma reestruturação delas?
Eduardo Nardelli: “Esse é outro grande problema da história, porque estamos falando de um novo processo, e é evidente que as empresas vão ter que se transformar, porque o BIM não é um software novo que você compra e começa a utilizar, ele é um processo novo.
Então você tem que comprar vários softwares novos, treinar as pessoas, investir em equipamento para poder rodar tudo, mudar os processos internos da empresa. A maneira como você fazia projetos antes não será a mesma. Isso é um investimento de peso, é caro, e tudo bem para as empresas se elas soubessem como será o retorno desse investimento.
Qual é a agenda que nós temos no país e nos estados de investimentos públicos que vão demandar BIM? Como eu, empresário, me preparo para gastar tudo isso para fazer o investimento se não tenho a menor ideia de quais serão as contratações às quais eu poderei concorrer no futuro?
E o que é pior: o BIM tem uma questão de interoperabilidade, ou seja, eu vou trabalhar com softwares diferentes, para disciplinas diferentes, que precisam conversar entre si. Então eles tem que falar a mesma língua.
E aí você tem duas opções: ou você trabalha com o sistema proprietário, no sentido de trabalhar com um desenvolver único de software, e aí você vai trabalhar dentro da suíte dele utilizando tudo o que ele oferece e que conversam entre si, ou você trabalha com sistema aberto, Open BIM, que vai trabalhar com uma linguagem universal, consagrada como padrão IFC, e aí você terá a condição de trabalhar com softwares diferentes que falam entre si através dessa linguagem.
Isso parece complicado, e é, mas o problema é que se não for assim será o software proprietário. Nós não sabemos por exemplo qual é o melhor software para fazer estrada, edificação, metrô ou linha de trem, podem não ser os mesmos. Não existe um estudo para saber. Então o que pode acontecer? Se for o software proprietário será aquele que o contratante definiu, e como eu faço, preciso estar preparado para utilizar o software que o contratante designou?
Segundo o decreto 10.306, sim, eu não só tenho que estar preparado, como lá embaixo no artigo sexto, parágrafo segundo, ele diz que eu sou o responsável por isso, eu terei que bancar e apresentar minha equipe capacitada para fazer o trabalho dessa forma. E aí como nós ficamos?
Quando tiver um edital eu vou saber qual é o software que o contratante quer que eu use, e pode ser que contratantes diferentes queiram softwares diferentes, então como eu preparo minha equipe? Então são questões que precisamos começar a conversar. Se nós adotássemos apenas um padrão universal como foi feito no decreto original de 2018, era uma coisa, porque eu conseguiria desenvolver minha equipe dentro de uma linha e aí exportar para o padrão IFC que é universal.
Agora como foi exigido no decreto que o contratante pode exigir o software no qual ele quer trabalhar, aí complicou, porque pode ser que esteja trabalhando com um desenvolvedor de um software para determinada coisa que não seja aquele da licitação, então há questões que precisamos resolver.”
Concrete Show: Dentro dessas questões, como está o Brasil em relação a outros países no que se refere ao uso do BIM?
Eduardo Nardelli: “Eu não acho que a gente esteja tão mal assim. Nós estamos até bem consolidados, temos por exemplo o grupo especial de estudos da ABNT criado em 2009 que já vem desenvolvendo as normas BIM.
Nós já temos um acervo de normas em relação ao uso do BIM no Brasil. As referências institucionais nossas estão muito boas, mesmo com as críticas que estou fazendo, e temos que criticar inclusive. Temos o BIM mandate, um decreto, então neste sentido eu acho que está andando.
No setor imobiliário, na construção civil, houve um avanço muito grande. Desde 2009 pra cá as incorporadoras enfrentaram um problema interessante, quando tivemos um boom no setor imobiliário, em que muitas empresas chegaram a ter 350 empreendimentos correndo em paralelo, não só no eixo Rio-São Paulo, mas espalhados pelo Brasil, e elas perceberam a necessidade de ter uma ferramenta de gestão de tudo isso, e encontraram o BIM.
Então muitas incorporadoras adotaram esse processo, e claro que seus stakeholders foram junto, escritórios de arquitetura, enfim, acompanharam esse movimento. Então já há uma massa crítica no Brasil de produção de projetos em BIM.
O problema é que nós estamos falando de construção civil, e quando falamos do setor público falamos de infraestrutura, e aí a coisa muda de figura, pois falamos de estação de tratamento de esgotos, rodovias, ferrovias, e já temos expertise na construção civil mas não é exatamente a mesma coisa, e certamente teremos problemas.
Mas não digo isso de forma pessimista, mas como um desafio. Ninguém pode achar que vamos voltar a usar orelhão e deixar o celular em casa [risos]. Tem até quem queira voltar para o voto impresso, mas a gente anda para a frente, mas que vamos ter problemas, vamos. E vamos ter que sentar e tentar resolver isso, talvez caso a caso.”
Concrete Show: Na sua avaliação, o que podemos esperar para os próximos anos na disseminação e aplicação da metodologia BIM?
Eduardo Nardelli: “O decreto 10.306 incorporou o roadmap que já havia sido desenvolvido antes, e fala que a partir de 2021 a gente começa a adoção do BIM no setor público, elencando alguns setores, como o Ministério da Defesa com aeroportos e etc para começar a dar esse passo importante.
E ele fala que no primeiro momento, entre os usos do BIM, isso será mais focado na produção de quantitativos e ação de documentos de obra. Mas ele prevê que a partir de 2024 o uso do BIM seja feito na obra, então já estamos falando de modelo digital chegando às obras. Estamos falando do 4D, 5D e etc, que nada mais é que um cronograma mas visual, em que você consegue ir vendo as etapas de construção do seu empreendimento.
Então eu acho que temos um desafio, a ideia é que até 2028 a gente já tenha alcançado essa implantação de modo geral, e eu acho que temos a oportunidade de fazer esse trabalho, vejo que haverá dificuldades, teremos que nos ater a elas, mas acho que nós vamos para frente. Eu sou otimista nessa matéria.”