Na primeira entrevista da série Mulheres na Construção, especial para o Dia Internacional das Mulheres, celebrado anualmente em 8 de março, conversamos com Edna Possan, engenheira civil e professora da Universidade Federal da Integração Latino Americana (Unila).
A convidada nos contou sobre o que a levou a cursar Engenharia Civil, os desafios enfrentados até a conquista do diploma e a sua paixão incondicional por ensinar.
Se assim como Edna você também quer trilhar uma carreira brilhante na Engenharia Civil, continue acompanhando a leitura!
Quem é Edna Possan?
“Sou uma aluna de escola pública que tinha o sonho de ser engenheira civil. Então, aos 17 anos ingressei na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e, à época da graduação, me apaixonei pela ensinança e decidi ser professora.
Para isso fiz mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), além de cursos de formação pessoal e muita leitura diversa e contínua.
Atualmente sou professora Associada Classe D (último nível antes do titular, nível máximo da carreira docente) na Universidade Federal da Integração Latino Americana (Unila).
Tenho uma filha de 7 anos que se chama Valentina, uma gata (Mia), muitas plantas (tenho o hobby de jardinagem) e muitos alunos (razão da minha profissão).
Iniciei as atividades formais na carreira docente aos 28 anos, contando atualmente com 16 anos de ação no ensino de Engenharia, com atuação em diversos cursos de graduação, pós-graduação, especialização e formação complementar/capacitação.
Sou uma mulher sonhadora e batalhadora que desde muito pequena tinha um objetivo, que sempre gostou de ler e escrever, além de ser muito falante (às vezes isso é um problema).
Já fui muito tímida, mas o tempo e as batalhas da vida me ajudaram a mudar esse perfil. Nasci e cresci no sítio, com muita liberdade para criar e desenvolver algumas soft skills, especialmente determinação, autonomia e liderança”.
Como é um dia de coordenadora do programa de graduação de Engenharia Civil na Unila?
“Coordenar um programa de pós-graduação requer algumas habilidades importantes de gestão de pessoas, recursos e processos.
O dia a dia em si não é extremado, porém em alguns períodos do ano as atividades são mais intensas, especialmente às épocas da Sucupira, plataforma da Capes que coleta dados de todos os programas do país.
A coleta Capes é, sem dúvidas, o trabalho mais pesado do coordenador do curso de pós-graduação.
Os programas de pós-graduação são avaliados por critérios quali e quantitativos a cada 4 anos e o planejamento estratégico a curto e longo prazo tem influência direta no processo avaliativo uma vez que há indicadores (metas) específicos que precisam ser atingidos.
Para conseguir o atendimento deles, algumas ações de difícil tomada de decisão podem ser necessárias, como, por exemplo, o descredenciamento de docentes pouco produtivos.
Contudo, essa tarefa é facilitada se o programa possuir regras claras quanto ao processo.
No cotidiano, as atividades envolvem atendimento de alunos, professores, convidados, pesquisadores e comunidade em geral.
Também envolve muito planejamento, desde as disciplinas a serem ofertadas até prazos de conclusão de mestrado dos alunos e estratégias para manter ou subir de nota.
Na Unila, cabe destacar que temos muitos alunos latino-americanos não brasileiros e para o melhor atendimento destes é desejável que o coordenador tenha habilidades de comunicação em espanhol.
Vinte por cento dos nossos egressos no programa são estrangeiros. Um número acima da média nacional, que denota o potencial da Unila para internacionalização. Esse é um dos pontos chave do nosso planejamento estratégico do programa”.
*Edna Possan foi coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil (PPGECI) da Unila entre março de 2020 e fevereiro de 2024.
Trajetória: o que te levou ao setor de Engenharia Civil e a carreira acadêmica?
“Aos meus 5 anos vi pela primeira vez uma grande indústria – antiga Sadia, atual BRF – com uma instalação fabril na cidade em que vivi dos 4 aos 17 anos, Dois Vizinhos, que fica no sudoeste do Paraná.
Quando vi a magnitude da fábrica afirmei que queria ser engenheira para construir coisas maravilhosas como àquela. E apesar de ser um sonho de criança, isso caminhou comigo.
Sempre tive aptidão para os estudos, inclusive matemática. Então, aos 15 anos decidi que iria estudar forte para ingressar na faculdade de Engenharia e fiz a matrícula para o 1º ano do Ensino Médio em um colégio estadual que estava com uma abordagem voltada à preparação dos alunos para cursar o vestibular.
Até este período estudei em escolas públicas na zona rural da cidade, com todos os percalços possíveis inerentes às escolas públicas, somadas às dificuldades de transporte, infraestrutura e comunicação das áreas rurais da época.
Todos estes pontos foram importantes para minha construção como persona. Aprendi desde muito cedo a me virar sozinha, a não temer, a fazer amigos, a me expressar, trabalhar duro (sem reclamar), entre tantos outros pontos.
E talvez devido ao meu perfil nerd, muitos professores gostavam de mim, a ponto de serem meus ‘anjos’ ou meus ‘mentores’ em termos atuais. Sim, tive muitos anjos de carne e osso durante minha trajetória.
Os primeiros foram meus pais, que apenas com estudos mínimos (até 4ª e 5ª série) sempre orientaram com veemência a importância da educação e dos estudos e, mesmo com poucos recursos financeiros, fizeram o possível e o impossível para que eu chegasse até aqui.
Sou muito grata a toda a minha família, meu porto seguro!
Também tive muitos professores anjos. O primeiro deles chegou à minha vida aos 6 anos, foi a prof. Cecilia. Nesta idade eu já sabia ler e escrever e meu maior sonho era ir para a escola. Porém, na área rural não havia pré-escola e, como a idade mínima para ingresso era 7 anos, eu não poderia ser matriculada.
A solução encontrada pela professora e pelos meus pais foi meu ingresso irregular na escola que ficava a 600 metros da minha casa. E assim eu fui… até completar a 4ª série.
Aí deu ruim, já havia completado o ciclo escolar, porém não tinha a documentação comprobatória para migrar para o 5º ano, cuja escola ficava distante 6 quilômetros da minha casa.
Na prática estava matriculada na 3ª série, então mesmo sendo a melhor aluna da turma tive que repetir o 4º ano para atender ao requisito de idade mínima – chegou aos meus pais um comunicado oficial da Secretaria de Educação do município. Faz parte.
Lembro que perdi meus amigos, mas fiz outros novos… Então quando ingressei no novo colégio outros professores me acolheram e me guiaram, com destaque para a prof. de História Neuza e de Geografia Mônica.
Ao chegar no Ensino Médio outros anjos apareceram e foram fundamentais para que de um universo de mais de 80 alunos matriculados no terceiro ano, apenas eu passasse no vestibular. Estatística dura.
Em 1998 não existiam cotas – alunos advindos de escolas públicas em universidades eram quase uma raridade.
O que me levou para a Engenharia foi a possibilidade de construir coisas, e para a carreira acadêmica foi a paixão por ensinar!”
Como você enfrentou e enfrenta os desafios da sua carreira?
“Acho que para a maior parte das pessoas, os desafios são quase diários. Os meus não fogem a esta regra.
O primeiro desafio foi ter que repetir uma série apenas por não ter idade escolar para estar avançada.
Talvez esse fato tenha me moldado para uma pessoa que não gosta muito de regras – acho que na maior parte das vezes elas nos limitam e destroem o potencial criativo.
Um outro desafio encontrei no terceiro ano do Ensino Médio, onde tive que fazer uma grande escolha.
Neste momento aprendi que escolhas são necessárias e se realizadas de forma consciente e alinhadas com seu propósito não tem como dar errado.
Ao ingressar na faculdade tive um grande desafio – talvez o maior desafio mental que fui submetida até hoje – sofri bullying de colegas de turma. Naquele tempo o termo não era conhecido, debatido e combatido como atualmente.
Novamente, os anjos apareceram! Dois deles na minha turma, Jack e Michele – que me davam o suporte emocional necessário para suportar os risos maldosos, comentários depreciativos, entre tantas insanidades que um ser humano é capaz de fazer. Resultado: somos amigas até hoje!
Esse fato, que durou cerca de dois anos, me moldou novamente da fala à vestimenta. E o mais importante: aprendi a ignorar o que não me faz bem.
Cada um destes desafios deixou sua marca. O que eles têm em comum é que nunca estive só! Logo, como eu enfrento os desafios da carreira? Cada qual a sua maneira, mas sempre com sensatez e com a austeridade que o tema demanda.
Para tal, em meus momentos de solitude reflito muito sobre os fatos, como ensina a filosofia. Tem funcionado”.
Quais qualidades te levaram ao sucesso?
“Uau! Sucesso é algo difícil, pois teria que perguntar o que é sucesso para você ou o que você entende por sucesso. Atualmente, parece que o sucesso está associado ao número de likes nas redes sociais.
Sobre essa ótica, prefiro não comentar. Considero que tenho uma boa capacidade de liderança, que entendo como uma habilidade nata ou desenvolvida.
Na minha minúscula bolha, de professora/pesquisadora, creio que o sucesso pode ser medido em relação ao antes e depois.
Olhando por esse ângulo, pode-se dizer que tive um bom sucesso: uma estudante de escola pública da zona rural do interior do Paraná que foi a primeira da família a ter um diploma, que se tornou professora universitária, bolsista de produtividade do CNPq e coordenadora de um programa de pós-graduação entre 2022-2024.
Isso não dá likes, mas é a minha história da qual tenho muita honra”.
Liderança: que dicas você daria para novas engenheiras que querem seguir uma carreira acadêmica?
“Por questões históricas e culturais as mulheres têm uma defasagem imensa na carreira tanto profissional como acadêmica. Na Engenharia não é diferente.
Apesar do percentual de egressos ser da ordem de 29%, na carreira profissional temos em torno de 20% de mulheres com registros ativos no CREA.
Na academia, a maior parte dos estudantes de Iniciação Científica na Engenharia são mulheres, nos cursos de mestrado e doutorado também.
Contudo, quando se olha o ‘sucesso’ acadêmico que no Brasil é medido pelas bolsas de produtividade distribuídas pelo CNPq constata-se que quanto maior o extrato da bolsa menor o número de mulheres contempladas.
Por exemplo, no nível mais elevado de reconhecimento do CNPq (PQ-1A), dentre os 23 bolsistas há apenas uma mulher, a prof. Denise Dal Molin, que tive a honra de ser minha orientadora.
Geralmente, uma mulher demora 10 anos a mais que um homem para alcançar ‘sucesso’ acadêmico, isso quando elas conseguem.
E isso se repete em vários outros lugares, especialmente em posições de destaque, onde quando muito somos minoria. A questão que fica: por que ficamos pelo caminho?
Cuidados com afazeres domésticos, responsabilidades com família, especialmente cuidados com filhos e idosos, são apontados como principais percalços na carreira acadêmica e profissional feminina.
Além disso, devemos considerar os estereótipos associados ao feminino, às questões culturais e religiosas que colocam a mulher em segundo plano, voltadas ao servir e a não questionar, entre outros pontos que são assuntos para um livro.
Então, para as futuras engenheiras que desejam seguir a academia ou profissional a mensagem é: precisamos nos posicionar socialmente e intelectualmente de maneira diferente, começando por aceitar mais desafios ou desafios maiores, especialmente posições e cargos de liderança.
Precisamos entender que podemos aprender ao longo do processo, e deixar de lado o medo de ‘não estar pronta’.
Devemos aprender a compartilhar os cuidados da casa, filhos, idosos, etc., sempre é claro com muito amor a atenção àqueles que amamos e para isso parcerias são fundamentais.
Se você for mãe e não tiver muita ajuda, inclua seu filho ou filha nas suas atividades.
Por fim, se você não veio ao mundo a passeio e quer fazer diferença, leve sempre consigo seus valores e siga seu propósito.
A carreira acadêmica é bonita, árdua e com muitos desafios, cuja recompensa chega através do outro – alunos, orientados e leitores de seus artigos – que replicam e aplicam seus ensinamentos”.
Gostou de conhecer a história da engenheira civil e doutora em Engenharia Edna Possan? Então, aproveite e leia a entrevista que abriu a série do ano passado, Mulheres na engenharia: Eliana Holanda Lima!